Educação sitiada: Escolas à serviço da militarização das cidades
Veja como podemos mudar nossa cidade aqui no DF.
Socializo aqui o importante trabalho do jornalista Drão Ribeiro e
seus companheiros de trabalho, do Portal Aprendiz, que trata sobre o avanço das
escolas militares no Brasil, a partir de Goiás.
Sinal
dos tempos!
Por volta de 700
a.C., na Grécia Antiga, Esparta treinava meninos para se tornarem guerreiros.
Marcado por conquistas de territórios e conflitos entre povos, o período
histórico demandava da cidade-estado indivíduos fortes, disciplinados,
obedientes e prontos para o combate. A agoge – como é conhecida a educação
espartana – dividia os aprendizes em ciclos, que variavam de acordo com a
idade, e tinham por objetivo desenvolver a excelência física e o domínio
emocional e psicológico para lidar com as adversidades da guerra. Os garotos
passavam toda a infância e adolescência afastados da família e do convívio
social.
O
anúncio de que até o final de 2014, sob o pretexto de diminuir a violência e
melhorar o desempenho dos alunos, ao menos 19 escolas públicas do estado de
Goiás serão repassadas à Polícia Militar, trouxe a educação para o centro do
debate sobre a militarização da sociedade.
Criadas
a partir de uma parceria técnico-pedagógica entre as Secretarias Estaduais de
Segurança Pública e Educação, envolvendo também as subsecretarias regionais de
ensino, as escolas atendem estudantes do Ensino Fundamental II e Ensino Médio,
em todos os períodos, a partir de uma estrutura pedagógica rígida, baseada na
disciplina individual e coletiva.
Inseridas
em cidades com altos índices de violência – Valparaíso, por exemplo, ocupa o
segundo lugar entre os municípios de Goiás, com 80,9 mortes a cada 100 mil
habitantes – as instituições de ensino militares são uma promessa do estado
para controlar episódios de indisciplina e desvios de conduta, além de
ocorrências mais graves dentro ou no entorno das escolas.
Para
concretizar essa proposta, o projeto pedagógico das escolas prevê que os
militares lecionem as disciplinas de “Educação Física” e “Noções de Cidadania”.
Esta última aborda temas como a “ordem unida”, orientações de trânsito,
Constituição Federal, meio ambiente, etiqueta social, prevenção às drogas e
educação religiosa. Além disso, o uso de farda é obrigatório e atrasos às
aulas, assim como qualquer desrespeito às regras, geram desconto na chamada
“avaliação disciplinar”.
Entenda o funcionamento dos colégios militares de Goiás
Formação versus Adestramento
Para
o professor de Ética e Filosofia Política da Universidade de São Paulo, Renato
Janine Ribeiro, a militarização das escolas indica a falência do sistema de
ensino brasileiro. “Em um período fundamental de formação, ao invés de educar,
você adestra e disciplina. O que o governo de Goiás está fazendo é renunciar à
formação dos sujeitos.”
Essa
renúncia engloba ainda, segundo o advogado e coordenador do Programa de Justiça
da ONG Conectas Direitos Humanos, Rafael Custódio, a falta de incentivo à
reflexão, ao debate de ideias, à criatividade e à tolerância, “saudáveis” na
formação de qualquer ser humano e “incompatíveis” com instituições rigidamente
hierarquizadas, como é o caso da Polícia Militar.
“Escolas
militarizadas podem deixar pouquíssimos espaços de discussão, de divergência e
até de tolerância para que seus alunos possam se manifestar como bem
entenderem. Acho que devemos nos perguntar se queremos escolas que criem
cidadãos de fato, não apenas cumpridores de ordens”, afirma Custódio, que vê na
formação baseada em valores bélicos o oposto do que se espera de uma sociedade
mais tolerante e que respeita a diversidade.
A
diretora do Instituto Sou da Paz, Melina Fisso, lembra porém que a rigidez, a
hierarquia e o excesso de disciplina presentes no ambiente militar estão
presentes em muitas escolas – inclusive aquelas que não são administradas pela
polícia. A falta de espaços de diálogo, gestões centralizadas e fechadas para a
comunidade, apesar de ferirem determinações da Lei de Diretrizes e Bases da
Educação (LDB), são comuns no ensino brasileiro.
“A
escola é um universo muito fechado. Em muitos casos, a relação dos alunos com o
corpo docente e com a direção é praticamente inexistente. Existem poucos
elementos de construção coletiva. Ampliando a visão do que significa esse
movimento, podemos dizer que há várias escolas com ambiente militarizado”,
aponta Melina.
Estudantes da CPMG
Dr. Cezar Toledo visitam Brasília.
Militarização para quem?
Um
aspecto que chama a atenção é a aplicação do modelo militar estar voltado aos
jovens pobres que frequentam a rede pública de ensino, já que são eles as
principais vítimas da militarização que acontece fora dela. O coordenador de
Educação da Faculdade Latino Americana de Ciências Sociais (FLACSO), André
Lázaro, vê no sistema das escolas de Goiás mais uma forma de “criminalizar” a
juventude pobre.
A
educação poderia ser um caminho para a mudança desse paradigma, mas acaba por
endossá-lo. É o que acredita Douglas Belchior, que trabalha há anos como
educador na rede de cursinhos populares da Uneafro e já conviveu com milhares
de estudantes oriundos da rede pública de ensino.
“Vivemos
num país racista, desigual, com mais de 500 mil presos. A escola poderia
caminhar contra essa lógica punitiva e violenta, dando formação para que os
estudantes pensem sobre o mundo em que vivem, tomem decisões. Mas na prática,
ela vira um ambiente de reprodução de autoritarismo. Há que se procurar o
respeito e o diálogo. Porque os alvos dentro do muro são sempre os mesmos alvos
da PM do lado de fora.”
Em
consonância com os projetos de militarização encontrados nas cidades – e
respondendo à demanda social por soluções rápidas e eficazes para os problemas
da educação – o fenômeno parece ter encontrado nas escolas uma oportunidade não
apenas de expressar-se, mas também de gerar novos reprodutores dessa lógica.
A
professora do departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo (USP),
Vera Telles, se diz impressionada com as “escolas-fortalezas”, que parecem
defender as crianças de inimigos exteriores. “Isso acaba por não formar
cidadãos, mas indivíduos preparados para enfrentar uma guerra.”
Segundo a professora, essa gestão evoca a ideia de guerra
urbana, na qual as dificuldades da vida cotidiana são tratadas de forma bélica.
“Essa lógica dialoga com tendências contemporâneas de militarização do conflito
urbano nas metrópoles. As tecnologias de controle vêm em pacotes globais, com
zonas de exclusão, drones, vigilância e gestão de multidão.” Para ela, a Copa do Mundo e as
Olimpíadas são exemplos de vetores dessas tendências.
Vera
identifica nas escolas militares de Goiás uma faceta do que ela chama de
“urbanismo militarizado”, fenômeno que transfere a lógica da guerra para o
controle do espaço público. Segundo ela, nesse processo, diversos dispositivos
de exceção são inseridos na ordem jurídico institucional e aparecem como
“normalidade”, mas são “gambiarras de exceção” que suspendem direitos e acionam
o poder discricionário do Estado.
Polícia entra em choque com manifestantes em São Paulo.
“O Estado tem o monopólio da violência legítima; isso é um axioma da
formação das sociedades modernas. Mas ele tem que desativar essa lógica, não
fomentá-la. O Estado brasileiro costuma se comportar como operador da vingança,
do esculacho, do assassinato de ‘suspeitos’, da violência, do terror”, avalia.
No Brasil, a linha que separa o que é civil do que é militar é
frequentemente borrada por pegadas de coturnos. A emblemática frase
atribuída a Washington Luís, de que a questão social é uma questão de polícia,
nunca deixou de carregar sua verdade com o passar dos anos. No entanto, Vera
acredita que o militarismo de hoje não é apenas uma atualização do passado.
“O mais aterrador de tudo isso é que as pessoas, ao terem
sistematicamente seus direitos negados, perdem a capacidade de imaginar outras
possibilidades de vida, como se fosse a única alternativa enxergar o Outro como
um inimigo a ser eliminado”, conclui Vera.
Violência
em Goiás
Segundo dados do Mapa da Violência
2013, entre 1998 e 2010, o índice de homicídios de Goiás cresceu 119,4% (29,4
homicídios a cada cem mil habitantes), ao mesmo tempo que a taxa do Brasil
ficou estagnada em 26,2. Nesse período, cresceu substancialmente o número de
assassinatos cometidos tanto no interior do estado (61,5%) como na capital e na
região metropolitana (86,6%). Já entre 2011 e 2012, Goiás registrou o quinto
maior aumento do país no que se refere aos registros de homicídios dolosos – de
998 para 1.297 ocorrências a cada cem mil habitantes, um aumento de 28,4%, de
acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública.
Reportagem:
Ana Luiza Basílio, Danilo Mekari, Jéssica Moreira, Julia Dietrich, Pedro
Ribeiro Nogueira, Raiana Ribeiro e Roberta Tasselli
Arte:
Vinícius Savron e Mayara Barbosa
Fonte: http://negrobelchior.cartacapital.com.br/2014/02/27/educacao-sitiada-escolas-a-servico-da-militarizacao-das-cidades/